Textos sobre tudo e sobre nada. No fundo, uma plataforma para reclamar da vida e dos erros ortográficos das pessoas, senão não seria uma aluna de letras.
Textos sobre tudo e sobre nada. No fundo, uma plataforma para reclamar da vida e dos erros ortográficos das pessoas, senão não seria uma aluna de letras.
No inverno, os meus vizinhos são os melhores do mundo: de dia são mudos, de noite estão calados; até podem estar lá mortos e ninguém sabe, mas de vez em quando dão sinal de vida a chamar o gato Nini. Por raramente ver o senhor Tavares e a sua esposa e ter pouco contacto com eles (amen a estes vizinhos), a ideia que tenho deles pode estar um pouco distorcida. Vejamos: desde pequena que acho que o sr. Tavares tem cara de talhante que falhou a profissão (passou à tangente de serial killer), já a senhora Cremilde é a típica responsável da cantina da escola que parece ser uma cobra - mas depois quando deixa soar a sua voz doce, derrete qualquer coração-frigorífico. É importante ainda dizer que este casal é totalmente #TeamCats, o que diz muito sobre eles, uma vez que tratam de animais (ponto MUITO positivo), mas depois escolhem aquele que não está nem aí nem para o Éder (nada contra, mas também nada a favor #TeamDogs).
Ora, com a chegada da Primavera, o casal maravilha dedica-se à jardinagem, mas junto com ela chega também a música alta. Eu, crente naquilo que a minha cabeça diz, nunca os tinha observado com atenção nesta época, mas eis que uma aula online surge e tudo parece mais interessante do que a métrica camoniana: o senhor Tavares além de estar num karaoke de corpo e alma, ainda estava a dançar com os seus gatos à vez - enquanto eles demonstravam o seu entusiasmo 😒 - e a senhora Cremilde filmava enquanto abanava a cabeça de desilusão.
A questão que importa é: será que sou vizinha de um tiktoker e não sei? Ou vamos mais por uma veia humanitária e acreditamos que era um vídeo para agariação de fundos para os anões coxos da Gronelândia com varicela?
Sabem aqueles dias em que corremos de um lado para o outro em piloto automático e só nos apercebemos disso no caminho para o trabalho ou à noitinha quando estamos a sós com os nossos pensamentos? Pronto, os meus dias têm sido assim. Há uma necessidade constante de distrair o meu cérebro com algo, mas quando a má conselheira chega é um grande martírio. Adiante: desde que mudei de universidade compensa-me mais apanhar o comboio para outra cidade do que levar o meu próprio carro, por isso tenho vivido muito em transportes públicos e estações - mais do que gostaria até.
Além dos atrasos muito pouco frequentes da CP (cof cof cof), tenho passado parte do tempo a imaginar a vida das pessoas como já sabem, mas pior do que isso é ouvir conversas soltas e tentar criar um fim para aquilo. É como se tivesse a ver uma série e acabasse um episódio a meio e durante o resto do dia fantasio sobre o que iria acontecer a seguir. Por exemplo, a dona Natália (que é uma idosa muito simpática com o nariz dentro da máscara - espécie rara, portanto) é uma das minhas personagens preferidas, porque traz sempre algo surpreendente para contar. Além dos seus cozinhados com aloe vera para curar feridas internas (não sei se isto teria sentido figurado ou não), recordo-me ainda dela falar do episódio em que a filha apanha covid numa zanga com a arqui inimiga. E o pior disto tudo, é que só consegui recolher esta informação, nem percebi se era um combate de cuspo ou se a inimiga era apenas uma pessoa sopinha-de-massa que por acaso também era negacionista.
Estas conversas descarriladas ficam a matutar na minha cabeça até aparecer uma melhor (mas vamos admitir: esta vai ser difícil de superar!). Por exemplo, será que a filha da D. Natália se vingou? Será que houve um round 2 com, sei lá, gripe A? Pior: será que ela morreu e a inimiga vai ter que viver com aquela morte na consciência? Questões que realmente importam.
Bónus: Imaginem este diálogo entre a filha da senhora Natália e S. Pedro quando ela acaba de chegar ao céu.
S. Pedro: Bem-vinda querida filha. Vamos preencher a tua ficha. Qual foi a causa da tua morte?
Enquanto assisto a uma aula sobre os best-sellers da atualidade, penso no quão importante são os livros na sociedade. Já pararam para pensar que, sem os livros, não existia desenvolvimento? Teríamos que começar de novo vezes sem conta. Já imaginaram o que seria ter de descobrir a aspirina outra vez, outra vez e outra vez? Foi através dos livros que os nossos cientistas registaram os seus avanços, as suas descobertas e, até mesmo, os seus erros. Sem os livros, não saberíamos quem foi Einstein, Homero ou Camões – e pior, não teríamos acesso à história da humanidade. Vamos mais além: para deixar algo registado, as pessoas tiveram que aprender a escrever e na altura (penso eu) não existia ensino. Então nenhum dos génios que conhecemos hoje andou na escola primária, nem teve a oportunidade de se sentar confortavelmente numa sala de aula ou assistir à aula secante de matemática pelo Zoom.
Ao pegarmos num livro, sabemos (ainda que de forma inconsciente) que alguém trabalhou para que aquele objeto tivesse aquela capa, aquele texto, aquelas imagens, etc., mas não pensamos muito nisso porque estamos perante o produto final - e o que é que importa quem inventou o bolo de chocolate se agora, neste preciso momento, ele é delicioso e eu posso desfrutar dele? Vivemos numa era em que os bens são encarados segundo a sua finalidade e já ninguém faz a pergunta "Como é que chegaram até aqui?" ou "Quando isto não existia, o que é que se utilizava?". O produto que se vende passa pelas mãos de centenas (quiçá milhares) de pessoas e antes destas já foi utilizado, aperfeiçoado e inventado por outras tantas.
Senhor leitor, serve este pensamento para valorizar o objeto que tem à sua frente: um computador, um livro, uma mesa ou, até mesmo, uma simples folha branca. Somos uma geração que tem o privilégio de utilizar (quase) de forma plena todas as invenções dos nossos antepassados que, como já disse, não aprenderam nada em tutoriais do youtube. Por isso, pensemos no privilégio que temos de ir à escola e na oportunidade de criar grandes génios com os desenvolvimentos que toda a humanidade fez até aqui. Hoje, quando pegarem num objeto, pensem na sua história e nos seus inventores, no que tiveram que estudar sem o Teams e os livros que tiveram de escrever até chegarem ao que vemos hoje.
Ao longo dos últimos meses, quando me cruzo com um desconhecido penso na vida dele e na coincidência que é termo-nos cruzado naquele momento. Pode ser no comboio, na passadeira, no supermercado e, até mesmo, num hospital: a verdade é que já não sei observar sem pensar além. O bom e o mau de fazer esta experiência é que nunca sabemos quando estamos perante um grande génio, um criminoso terrível ou, até mesmo, o futuro presidente da república: apenas sabemos que estamos diante de um ser humano.
Enquanto caminho pela calçada portuguesa que muito orgulho me dá quando não estou de saltos, observo a correria das pessoas e tento adivinhar a sua história. Um grupo de senhores engravatados apressa-se e uma mulher corre atrás deles. Será a secretária de um deles ou apenas uma grande alegoria? Adiante. Tento adivinhar como é que aquela senhora foi ali parar e como é curioso que nos tenhamos encontrado naquele dia, naquele espaço, naquele momento. O mesmo acontece quando vejo um motorista, uma vendedora e, até mesmo, um colega de faculdade que já parece catedrático.
Às vezes penso como este exercício pode ser interessante e tenho vaidade nisso, mas depois subo para mais um patamar e o sentimento evapora-se. Refiro-me a um hábito que adquiri desde pequena que consiste em inventar diálogos entre pessoas. Acredito piamente que este é o segredo da minha imaginação e criatividade e que todos deviam experimentar pelo menos uma vez.
(mas que é uma ida sem volta)
Mais para ler
Subscrever por e-mail
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.